"Bom dia, menina!"
O senhorzinho, distribuindo seu canto delicado e potente, destoava da contenção sonora do horário — mas não chegava a incomodar. Não era barulho. Era cor, poesia, afago. Coisas que nunca incomodam.
Outro dia fui acompanhar meu caçula até a escola e, no retorno pra casa, passei por um senhor que animadamente fazia sua caminhada matinal. Cada passada era dada com tamanha confiança que, mesmo de longe e em meio a neblina fria de outono, notei sua presença se aproximando.
Antes de propriamente enxergá-lo, percebi que exercitava também suas cordas vocais — e não o fazia timidamente.
Eram 6h50 da manhã e os ônibus já circulavam quase cheios, os Celtas e Fiats Uno já passavam apressados, a padaria entregava a terceira fornada, os fiscais da vida alheia — reunidos na banca de jornal — já comentavam manchetes e produziam relatórios.
6h50 já é quase meio dia no fuso horário da periferia. Mas seu movimento matutino (apesar de pulsante) procura manter-se em baixo volume. Não chega a exigir silêncio, mas também não demanda barulho.
O senhorzinho, distribuindo seu canto delicado e potente, destoava da contenção sonora do horário — mas não chegava a incomodar. Não era barulho. Era cor, poesia, afago. Coisas que nunca incomodam.
Quando nossas trajetórias finalmente se cruzaram, cantarolei junto, cúmplice, ainda que num volume mais condizente com o horário. “Queixo-me às rosas, mas que bobagem! As rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti”.
“Bom dia, menina!”. “Bom dia” — respondi. Sorrimos. Seguimos.
Naquele dia, mais do que em qualquer outro, cada passada minha encontrava uma poça de preocupações. Problemas muito práticos, mundanos, mas com desdobramentos para além de um futuro meu — os filhos, sempre eles. É frequente que eu me perca nesse tipo de pensamento — e sempre que me acomete essa desesperança de futuro, lembro do meu pai, uma pessoa que nunca se permitiu duvidar de que tudo estava em seu devido lugar (ainda que esse lugar tivesse por nome CAOS).
De perto pude perceber que o caminhante cantante compartilhava em minúcias a estética do “senhorzinho da periferia”. Camisa xadrez de botão, short de tactel, meias esticadas até a canela, par de tênis um pouco surrado — testemunho da quilometragem do atleta — os cadarços alvíssimos, em contraste — faróis de milha tentando atravessar a neblina.
Mas o que me pegou mesmo foi a canção — a preferida do meu pai. Talvez tudo estivesse mesmo, em seu devido lugar.
Meses depois, no mesmo trajeto, o mesmo senhor. Desta vez eu estava de carro com o caçula — e ele, o senhor, acompanhado de um grupo.
Não cantarolava, provavelmente para não atrapalhar o fluxo da conversa, mas o sorriso era o mesmo. A alegria de estar vivo.
Parei o carro para garantir que atravessassem a rua com tranquilidade. Ele sorriu largo e disse de novo “bom dia, menina!” — e acenou com entusiasmo, parecendo lembrar de nosso primeiro encontro.
Todo o grupo acenou em agradecimento pela gentileza. Assistimos a travessia em silêncio — eu e meu pequeno. Acenamos de volta e seguimos nosso caminho. Meu filho então comentou: “ahh que velhinho fofinho, né mãe? Me lembrou meu avô!”.
Contei pra ele sobre meu outro encontro com o mesmo senhor, sobre a cantoria, sobre a música preferida de seu avô. Mas, antes que o sopro sempre traiçoeiro da saudade o deixasse cabisbaixo, emendei: “como é bonito né, filho? Uma alegria assim, tão verdadeira, tão sem motivos!”. Ele concordou com um sorriso de quem realmente soube apreciar aquela pequena dádiva. Fiquei orgulhosa. Tá aí uma capacidade imprescindível para atravessar com bom ânimo mesmo os tempos mais sombrios.
“Sem pensar nas queimadas, né mãe? — ele achou necessário complementar. E, percebendo que eu não havia entendido muito bem, qual era o seu ponto, continuou: “... Sem pensar nas pessoas sem casa, nas pessoas morrendo, sem lembrar de tudo que aconteceu na pandemia…”
Ah, pronto. Lá vem as poças de preocupação. Não era aqueeeela preocupação avassaladora do outro dia, mas, ainda assim, preocupação — palavra que, eu desconfio, termina com ÃO porque mesmo quando é pequena, pode rapidamente se tornar imensa.
Talvez eu esteja criando meus filhos com muita consciência de mundo, mas pouca poesia — ambas ausências são graves, imperdoáveis. Dois termos de uma mesma equação onde a incógnita, sabe-se lá, pode ser o segredo da vida ou da felicidade ou dos dois.
Mais do que tudo na vida, educar os filhos é viver tentando encontrar esse equilíbrio
Importante lembrar que nem todo equilíbrio é estático. Pelo contrário! A maioria é dinâmico, turbulento, alternadamente acelerado e lento, silencioso e barulhento.
E até um pouco caótico.
Como o despertar da periferia.
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