A vida é uma corrida ao contrário. Vence quem chega por último. Os primeiros são eliminados.
A vida é um eterno “paredão” onde a popularidade só influencia no tamanho da torcida por sua permanência — ou partida.
A vida é um No Limite onde a maioria das provas é extremamente enfadonha.
Fila de banco. Chamada em espera. Comercial que interrompe a final do campeonato. Internet que cai e não volta nunca. Luz que falta e deixa geral num calor insuportável a noite inteira. A espera pelo atendimento no pronto socorro lotado. O resultado do exame de sangue. Quatro anos de governo fascista. Ônibus que não chega. Uber que cancela. Trânsito que não transita. Quem sobrevive a tudo isso, ganha um caixão.
Eu me pergunto como deve ser ver todos os seus morrerem. Um por um. Ver o mundo se transformar numa imensa coleção de estranhezas. Me pergunto se vale a pena ser o último. Me pergunto o que vão dizer de mim depois que eu me for.
Tem um tempinho que eu comecei a temer a morte. Deveria ter acontecido logo que tive filhos, mas como sou lenta, precisou o mais velho fazer 15 anos pra eu entender que não posso mais morrer — e, por não me permitir mais esse privilégio, passei a temê-lo.
Quais "unfinished business" eu vou deixar? Como faço pra alguém ter acesso aos textos que comecei a escrever? Como faço pra não terem acesso aos meus nudes? Como faço pra deletarem meu perfil das redes sociais? Não quero ficar vagando pelo ciberespaço, alma penada cibernética, avatar oco.
E ainda tem o seguro de vida que eu não sei se corre o risco de o banco dar um migué e não pagar. Quem vai ter condições de armar esse barraco, se não eu? Não sei se dá pra não pensar na morte e, ao mesmo tempo, pensar na vida de quem fica.
Que medo de faltar pros meus filhos. Que medo de fazê-los sentir essa dor — e, ao mesmo tempo, é melhor que eles sintam a minha partida do que eu sentir a deles.
Minha avó paterna morreu com quase 100 anos, lúcida, com saúde. Em vida, perdeu dois filhos. Um, recém nascido. Outro, já na velhice, poucos anos antes dela mesma partir — uma perda que pareceu aproximar vovó de seu próprio fim.
Talvez a cena mais impactante que presenciei na vida tenha sido minha avó acenando com um lencinho, enquanto o caixão de meu tio era transportado da capela até a cova. Ela não aguentaria a caminhada mais longa de sua vida — mesmo o túmulo ficando a poucos metros. Ficou da capela acenando enquanto o cortejo seguia. Aquele lencinho, sempre perfumado, agitado no ar com o que pareciam ser as últimas forças de uma mãe. E ela dizendo: "adeus, meu filho. Adeus, meu filho amado". Uma cena tão linda quanto dilacerante.
Tem beleza na morte, mas não tem consolo. A morte é uma beleza da qual ninguém desfruta.
Falo da minha avó, Margarida (se tem nome melhor pra avó, eu desconheço), e logo penso no seu filho mais velho. Fiquei na dúvida se vovó perdeu um ou dois filhos recém nascidos e, sem raciocinar, pensei em perguntar ao primogênito, meu pai. Tem três anos que ele se foi também e eu ainda tenho coisas a perguntar.
Que saudade do meu pai. Que medo de perder minha mãe. Que medo dos meus filhos perderem a mãe deles — o pai eles têm tão pouco. Quem cuidaria deles como eu cuido?
Não vai dar mesmo pra tá morrendo, do mesmo jeito que não vou poder viajar pra Europa esse ano: ambos são luxos que eu ainda não posso bancar.
Então o que me resta é voltar pra academia. Prestar mais atenção quando atravessar a rua. Dirigir mais calmo. Comer direitinho. Tomar vitaminas. Aferir a pressão. Fazer exame de sangue. Cozinhar comida fresca. Correr menos riscos. Estressar menos. Parar de beber. Diminuir refrigerante. Ir ao médico regularmente. E tudo aquilo que compõe a tal maratona de tédios da corrida ao contrário.
Não sei se dá pra cuidar de não morrer e viver ao mesmo tempo.
Há que se viver — e morrer — tentando.
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Por falar em riscos, tá chegando a pré-venda do meu livro!
Tenho que fazer lançamento. Não sei fazer lançamento. Não sei produzir evento nenhum — quem frequenta minha casa bem sabe.
Erro o tempo de gelar a cerveja, faço comida demais ou encomendo salgadinhos de menos, esqueço a sobremesa, falta guardanapo, e a casa tá sempre um pouco bagunçada — OU eu não consigo tempo pra tomar banho, lavar e secar o cabelo.
Não sei estar no centro de qualquer coisa. Procuro sempre as laterais — se possível, atrás de uma pilastra.
Também não sei vender nada. Quando indico um filme e me perguntam “mas é o que, esse filme?” só sei responder “é bom, assiste” — argumento especialmente inócuo pra vender meu próprio livro (vovó dizia que elogio em boca própria é vitupério, não sei o que é vitupério, mas parece bem desagradável).
E se eu não vender mais do que 10 cópias (mesmo contando com umas 5 da minha família)? E se eu embarcar na onda de ser uma artista incompreendida? — uma ideia romântica que dificilmente paga as contas (como todas as ideias românticas). E, como os incompreendidos precisam das gerações vindouras para serem postumamente identificados, vou morrer sem saber se era de fato incompreendida ou só ruim mesmo.
Por outro lado, é preciso entendermos que nada (absolutamente NADA!) de relevante se faz sem correr riscos.
E eu não vou mentir: acho meu romance relevante. Não vou permitir a autossabotagem me fazer dizer o oposto do que sinto, do que sei.
É um romance. É ficção. É um pouco sobre maternidade. É MUITO sobre casamento. É SUPER sobre divórcio! Acima de tudo, é sobre a perspectiva feminina (e divina!) navegando os oceanos do patriarcado.
É emocionante, às vezes, mas também tem momentos engraçados — imagina se eu não ia meter uma palhaçada!?
É sobre as alegrias, tristezas e desafios que também fazem parte da maratona ao contrário.
Mas se você for meu amigo e me perguntar “é o que, esse teu livro?”
Eu vou te responder: É BOM. LÊ SÓ, PRA TU VER.
PS: A coisa mais maneira nele é a pessoa que assina a orelha! Mas isso é assunto para o próximo episódio!
Essa é, sem dúvidas, a sua melhor edição de todas desta newsletter. Que texto, amigdalazinha, que texto! Quem sou pra te dar garantia de vida, meu amor, mas eu acho que se a gente mantiver aquele nosso plano de você nunca plantar uma árvore e eu não fazer um filho, A GENTE VAI FICAR BEM por uns bons anos! Pelo menos por tempo suficiente pra gente escrever mais livros e rodar o mundo quando a gente estiver com os cabelos completamente brancos! Até porque, se você morrer antes disso, EU TE MATO!